Quero iniciar esse texto agradecendo aos meus ancestrais. Se não fosse por eles, por toda a luta que travaram para serem libertos e por não aceitar o que a perversidade da branquitude tramou para nós, povo preto, hoje eu não poderia estar ocupando esse local. Sou grato por ter esse espaço e poder escrever sobre como eu me sinto. Pois, até chegar em mim, muitas vozes foram silenciadas e milhares de vidas assassinadas. É necessário saber que os direitos que temos agora, apesar de pouquíssimo em comparação ao que esse sistema racista nos tirou, foi conquistado à base de muita luta, suor e sangue.
Quando criança, meu convívio familiar era majoritariamente branco. Acredito que esse foi um dos motivos que contribuíram para que eu demorasse a me reconhecer como uma pessoa preta. Era uma questão confusa pra mim, até porque não me deixavam esquecer dessa pequena diferença, a cor. Mas em contrapartida, quando eu estava fora do núcleo familiar, me sentia menos preto em comparação aos meus iguais, e isso me dava uma sensação de "superioridade". Esse pensamento era reforçado com comentários a meu respeito que diminuía minha negritude, em forma de elogios: "ah o Rafinha é preto, mas tem traços finos"; "não, ele nem é tão preto assim, ele é moreninho"; "ele é um moreno jambo, como eu queria ter essa cor" e blá blá blá. Foram inúmeras as vezes que eu me sentia bem por ser "menos preto que os outros", acho que inconscientemente eu ficava satisfeito por ser aceito nesses espaços, mesmo quando existiam comentários ruins associados a pele preta. Eu negava minha ancestralidade e exaltava tudo o que era branco.
Conforme fui crescendo, saindo da infância e passando pela adolescência e juventude, as agressões raciais foram aumentando. Tive que frequentar outros espaços: escola, esportes, igreja... Tudo muito branco. Me sentia cada dia mais invisível. Mentia sobre alguns aspectos da minha vida , na tentativa de parecer mais interessante. Desejava ser outro alguém, queria me sentir pertencido, VISTO! Queria ser branco. Tudo isso me sufocou, e então desacreditei de mim. Não enxergava nada que pudesse ser positivo a meu respeito, fiquei sem esperanças, sem sonhos. Me tornei um jovem inconsequente, com baixas expectativas futuras, infeliz e sem nenhuma autoestima; me coloquei em relações onde tudo que fiz foi me anular pois achava que era o que me restava.
As coisas começaram a mudar no ano de 2018, após a morte de Marielle Franco (vereadora, defensora dos direitos humanos e minorias, covardemente assassinada em 14 de março). Lembro que aquele acontecimento me abalou muito, até então eu não a conhecia, mas ver toda aquela repercussão me balançou. Eu chorava sem entender que aquela dor também era minha e tinha relação com tudo o que eu já havia passado. Naquele ano eu comecei a deixar meu cabelo, que eu sempre havia raspado, crescer. Não fazia ideia de como ele poderia ser e a força que me traria. Claro que ouvi muitos comentários negativos, a maioria deles de forma velada, disfarçados de piadas. Mas, começar a assumir minha identidade, me fazia de certa forma entender que o incômodo vinha do outro, e não tinha nada de errado comigo. Nesse processo, passei a questionar o suposto poder que esse outro acha ter sobre mim, de opinar na minha vida, de dizer o que eu devo e não devo fazer ou como agir. Comecei a me impor, a rebater os comentários que me feriam, a me unir com os meus para me empoderar.
Em 2019, iniciei um processo psicoterapêutico que foi o "divisor de águas". Tudo começou a fazer sentido, eu não precisava ser outro alguém, eu precisava me conhecer. Passei a me enxergar com mais carinho, compaixão. Entender de onde eu partia e que tudo em minha jornada deveria ser abraçado e cuidado por mim. Aquele limbo de confusão em que eu me encontrava, finalmente começou a parecer entendível, comecei a perceber o meu valor, minhas potências. Mas ressalto que não foi fácil e continua não sendo, a diferença é que hoje eu sei que posso me dar o suporte que sempre busquei no externo. Estou me curando. Aprendendo a me relacionar com meu mundo interior e com o mundo externo. E mais do que tudo, aprendi que O QUE EU SINTO IMPORTA.